GARATUJA EM MOVIMENTO
FCA CARLA - Narrativas de Devoção
A religiosidade popular é um elemento pulsante na cultura de Tianguá, Serra da Ibiapaba. A presença das missões jesuíticas, no século XVII modificou os costumes das comunidades indígenas locais, incutindo no imaginário popular as tradições católicas. Na segunda metade do século XX o município vai tornando-se o centro político, econômico e religioso da região. Nesse período tem início a história de Francisca Carla, portadora de Hanseníase (conhecida como morféia e lepra).
Francisca Carla é segregada do meio social numa época em que o estigma criado sobre a lepra causava repulsa aos enfermos. O “único” modo de tentar controlar a doença era confinando os leprosos, mas como na cidade não existiam leprosários, Francisca Carla foi isolada no meio da mata, onde passou o resto de sua vida. Seu exílio perdurou por cerca de cinco anos, sobrevivendo de doações e falecendo aos 48 anos. Com o passar dos anos outras pessoas - na maioria recém-nascidos - foram sepultadas ao lado de sua cova. Posteriormente uma capela foi construída no local e mais pessoas passaram a freqüentar o lugar para rezar e deixar ex-votos (oferendas) como forma de agradecer a um algum milagre atribuído à intervenção de Francisca Carla - agora venerada como “Santa”. No imaginário popular a santificação de Francisca Carla se dá pelo seu sofrimento e conformismo diante de sua situação de exclusão e abandono.
A realização do curta-metragem FCA CARLA – Narrativas de Devoção tem grande importância para o desenvolvimento da produção audiovisual na Ibiapaba, para o fortalecimento das identidades e para a historiografia regional, uma vez que o projeto valoriza a memória oral e o universo mítico e simbólico que envolve a figura de Francisca de Carla, que é construído, reconstruído e perpetuado através da oralidade.
MARRÓIA! UMA FICÇÃO ALENCARINA
Uma feira. Um vendedor de café e bolo entra numa perseguição danada, ao ver seu namoro descoberto pelos irmãos da sua musa. Familiar? Claro que sim. Qualquer novela fala sobre isso desde Shakespeare. Mas a trama simples ainda interessa a jovens criadores que, na frente ou atrás das câmeras, se dispõem a revelar suas próprias abordagens. É o caso do pessoal da escola Tancredo Nunes de Menezes, adolescentes de um projeto pedagógico em Tianguá, na Serra da Ibiapaba.
O vídeo resulta do exercício final do Projeto de Iniciação à Produção Audiovisual “A Palavra em Movimento”, desenvolvido pela Escola de Ensino Médio Tancredo Nunes de Menezes em parceria com a Associação de Amigos da Arte Garatuja e Prefeitura Municipal de Tianguá. “Era também um projeto sóciocultural, atendendo alunos da escola pública e de periferias da cidade, uma periferia com problemas comuns a qualquer lugar. Todos os atores são da comunidade, a maioria filhos de agricultores, desempregados, donas de casa”, conta Natal.
O vídeo digital, caseiro, com 28 minutos, envolveu moradores que acompanharam as carreiras que o ingênuo Zé do Bolo teve que dar depois que suas cartas de amor foram soletradas pelo ladrão, que trata de dedurar o namoro à família da moça. Arte educador, Natal Portela também mexe com samba e música eletrônica. Mas a trilha que anima a trama popular traz Mundo Livre S/A, Aldo Sena e The Originals.
“A idéia partiu dos meninos mesmo. É um processo coletivo dos alunos, alguns professores e amigos”, diz o diretor, cuja experiência anterior era apenas a de um curso de curtas-metragens, no Cetec de Sobral. “Aprendi a fazer fazendo, como todo mundo”. Deu certo, a população de Tianguá, pelo menos, aprovou. “Começaram a copiar, a gente nem tinha plano de comercializar. Os camelôs vendem a cinco contos”, diz Natal, ressaltando que o grande segredo desta popularidade é o fato de o vídeo ser feito com gente da cidade, na feira e em ruas conhecidas. “Isso é uma alternativa para o audiovisual, mesmo com as dificuldades”.
Natal se refere inclusive à “ditadura do curta” que estabelece limites para a metragem, que qualificam os 28 minutos de média, prejudicando a difusão, após uma batalha para aprontar tudo, do jeito que dava. “Usamos um microfone e uma câmera só, domésticos”, enfatiza. Mesmo assim, Natal e os demais cineastas de Tianguá aguardam alguns roteiros pré-habilitados em editais da Secretaria de Audiovisual do Minc. Um deles, “Francisca Carla - narrativas de devoção”, segundo Natal, um doc-ficção sobre a religiosidade popular, na década de 50, quando uma portadora de hanseníase foi isolada pela comunidade e virou santa popular. Eles também planejam transformar a Associação Garatuja em um Ponto de Cultura.
“Pretendo mostrar aqui depois. Não foi pro Cine Ceará porque ele não abre pra resoluções baixas”, lamenta Natal. Por enquanto, tem o Cine Cufa, onde devem se apresentar no próximo domingo, dia 14. “Seria importante que as pessoas votassem na gente pelo site www.cinecufa.com.br, pois haverá uma premiação”, convoca. A perseguição continua.
De 2004 e disponível em DVD, o filme abocanhou vários prêmios pelo País e até no exterior, acompanhando a sina internacional de seu realizador, cujo trabalho mais recente está chegando ao mercado de DVD por uma grande distribuidora internacional sob o título de “Cadáveres 2”. Há cerca de uma década, mais exatamente em 1994, tivemos também o exemplo de um documentário, de oito minutos, de Glauber Filho e Tibico Brasil, exibido na Video Mostra Fortaleza, embrião do Cine Ceará: “Borracha para Panela de Pressão”, sobre os camelôs de Fortaleza. E ainda as realizações da produtora Nosso Chão, dos irmãos Ivo e Eliseu de Souza, que marcaram aqueles anos 90 com importantes produções documentais e ficcionais de ambientação local.
Não propriamente por ser uma produção, em vídeo, bastante modesta, mas pela proximidade com o tema abordado, o filme do pessoal da Associação Garatuja, de Tianguá, acabou ficando com a cara de uma cidade do interior cearense. Pelo menos, aquelas que não se curvam diante da sede de mascarar sua própria realidade, em nome de um progresso mais fantasioso do que legítimo. Assim, o próprio uso da expressão-título, “Marróia”, reflete bem o apelo popular do projeto, referindo-se a uma interjeição em bom cearensês, utilizada em algumas situações de surpresas dos personagens.
A movimentação na feira e a dinâmica do protagonista, que desembesta de bicicleta da sua comunidade até a sede, acabam sendo valorizadas pelo diretor Natal Portela. Claro, sem steady-cam, o que faz com que a câmera pule, balance. Há outras deficiências, como o elenco e o áudio. Mas a determinação da moçada por si só merece um prêmio, com o perdão do lugar-comum. Não é todo dia que uma cidade, um Estado, se representa na tela, fugindo aos modelos hegemônicos, pasteurizador de realidades.
“Marróia”, não é que a batida saga de Zé do Bolo tem algo tão arraigado à nossa cultura que já deveria ter virado um filme, com a nossa cara, há mais tempo? Que venham outras feiras do interior, atualizando o pré-cinemanovista baiano Roberto Pires e seu “A Grande Feira”, enquanto as feiras e o próprio desejo de fazer cinema não sucumbem aos super-mercados das imagens.
Repórter